Montar Nelson Rodrigues é sempre um perigo. Um autor de tamanha envergadura e
que por si só representa o Teatro brasileiro no que este Tetro melhor produziu
em termos de dramaturgia. Um desafio que alguns apressados montam, caindo numa
cilada estética ou mesmo num vazio de propósitos teatrais. Nelson sempre será
um defenestrado, para o nosso deleite, nós que prezamos seu nome e carregamos
este Teatro feito com paixões incontidas. Alguém tem que dar a cara a tapa por
aqui, e este alguém foi o diretor João Fernandes, que coloca em cena um Vestido
de Noiva repleto de agradáveis surpresas e muita, muita inventividade. Ouso
dizer aqui que esta montagem brilha pela simplicidade dos elementos e pela
precisão na interpretação e condução da cena teatral, numa tradição que remonta
a montagens consagradas de textos de Nelson, com algo ritualístico, tal como
feito tempos atrás por Antunes Filho. Estes vetores da pausa, das cadências
seguras e de transições de cena extremamente bem executados fazem deste
trabalho um dos mais representativos da atual cena teatral amazonense, que,
diga-se de passagem, tem se revigorado, apesar dos chatos de plantão, exímios
críticos teatrais que não convivem com o atual momento da produção local de
nossa tão calejada teatralidade. O texto de Nelson, clássico, foi reinventado
com as minúcias necessárias para não cair no clichê fácil ou na
descaracterização, o que seria até pior neste sentido estético e da linguagem.
A palavra é esta. Linguagem. Os planos da alucinação, da memória e da realidade
são trabalhados de forma matemática, com planos e colocações interpretativas de
alto nível de comoção e de interação com a plateia. Alguns dados importantes
para se compreender o nível deste curioso jogo cênico, feitos com esmero pela
equipe da Cia de Idéias. O detalhe crucial é a representação feita
exclusivamente por homens, que se reveza em personagens antagônicos ou
simétricos. De Alaíde a Lúcia, de Pedro a Madame Clessi, da Mulher de Véu aos
leitores dos diários cotidianos, todos são vistos nesta multiplicidade de
atuações, e aqui os atores estão coesos, precisos e carregam a dramaticidade ao
limite, sem esquecer que os momentos de tensão também são entrecortados por
situações de escárnio e humor ácido, característica basilar da obra do grande
dramaturgo brasileiro. O corte do cabelo, aparato militar aos atores, confere
um ar de solenidade dúbia, de situações paradoxais e de mudanças bruscas de
suas personalidades, como se esta cabeleira rasteira imprimisse uma força para
que a cada momento uma nova máscara repouse no semblante do ator. Eduardo
Klinsmann tem uma voz e presença de cena marcante, Gleidstone Melo também se
supera no seu jogo de faz de conta, de contar e rememorar esta situação em três
planos distintos de atmosferas teatrais. Ítalo Soares, talvez o mais jovem ator
do elenco, demonstra um crescimento na atuação, e talvez pela idade deste jovem
ator, sua voz ainda ganhará um personalidade vibrante em cenas futuras. Vitor
Lima é um ator firme, com voz penetrante e de forte impacto, e que sabe colocar
as nuances de seus personagens nos pontos fundamentais da interpretação
teatral. Nenhum destes atores usou da caricatura, que seria óbvio e mataria,
por assim dizer, todo o brilhantismo desta simples e ousada montagem. A
elegância deste trabalho está justamente em ter este Nelson essencial com uma
carga simples e objetiva, sem arroubos desnecessários e acessórios que
tornariam a cena barroca e carregada de elementos produtores de uma poluição
visual e estética. Aqui a dosagem é certíssima. Lembrando que o próprio diretor
também esta no elenco, e que apenas com o uso de um pequeno lenço nos brinda
com uma Madame Clessi memorável.A capacidade de criação de um artista pode ser
medida por estes iluminismos da cena, onde não vemos nada mais que um simples objeto,
o artista molda com alma o concreto e físico e o transcende. O figurino formal
carrega certo ar de nostalgia e de tempo aprisionado, e temos os usos de
símbolos que são precisos e não confundem a cena, pelo que percebi o público
acompanha atentamente o desenrolar do conflito cênico, e as roupas também
ganham novas dimensões, como no momento das cocotes que usam os ternos do
avesso e já nos indicam que estamos neste cabaré perdido neste inefável túnel
do tempo da dramaturgia magistral de Nelson Rodrigues. Os atores, insisto,
interpretam as mulheres sem a afetação que destruiria a montagem. São homens,
não são mulheres. Representam estas mulheres de Nelson, mas não são reféns
delas, elas não conduzem a representação, os atores, estes, trafegam com estas
elegantes ou decadentes senhoras da sociedade. A iluminação e a música são
outros fatores que nos indicam que a norma da sincronicidade foi um elemento de
vigor deste Vestido de Noiva, focos econômicos e som calculado para dar um
efeito melífluo, mas visceral, tornam a montagem fechada, coerente e orgânica,
com usos de triangulações dos personagens que prende a atenção do espectador.
Uma simples renda preta colocada nas cadeiras já nos transporta para outro viés
de cena e de interpretação, onde a gravidade da situação é colocada, onde a
morte fica sempre na espreita, onde agora somos os reféns destes personagens
tão bem projetados diante de nossos olhos. O cenário, feito uma caixa dividida
numa semi-arena, com cortinados de renda branca, e o inusitado final com uma
semi-nudez elegante de todos os atores, são o ápice deste momento teatral
proporcionado pela Cia de Idéais e por seu diretor João Fernandes. Os objetos
utilizados são relegados a primeiro plano, fundamentais para as sutilezas dos
movimentos e da carga emotiva impressa pelos atores, como se a cada mudança,
eles, os personagens, fossem tragados para o espiral da história rodrigueana.
Como não ver lirismo nestas cenas, no casamento medicamentoso e hipocondríaco,
referendado no belo cartaz de divulgação deste Vestido de Noiva? Aos sentidos e
sentimentos cabe ver além das cenas propostas, ir para o outro lado, talvez o
lado mais escondido deste trabalho, que possui algo de intrínseco e até mesmo
esquizoide, como se estes fantasmas operassem bem próximo aos nossos ouvidos,
sussurrando cada palavra com aquele tom misto de trágico e cruel, mas nos dando
um alento reconfortante através do poder desta arte chamada Teatro. É torcer
para que esta montagem tenha longa vida em nossos palcos e além dele.
Nenhum comentário:
Postar um comentário